quarta-feira, 14 de março de 2012

"Como é bom estar vivo" - Impressões de uma primeira visita a El Chalten.

Demorou mas saiu. Relato sobre minha curta passagem a Chalten pronto. Ficou bem longo porque não quis resumir os detalhes. Se tiver paciência leia tudo ou apenas divirta-se com as fotos. Tenho muitos amigos que ainda não me ouviram contar a história dessa escalada, então escrevo aqui a eles mas principalmente a uma pessoa: Luísa Diederichs. Minha parceira de travessias de cânion, de revesar ponta de corda na escalada e também minha grande amiga. Apesar de hoje em dia o destino ter tornado diferente nossas prioridades, sei que o coração dela bate forte ao ler as histórias sobre escaladas e lugares incríveis. Tenho certeza que ela seria uma das poucas amigas que se atreveria a encarar uma indiada dessas comigo.




26 horas de ônibus. Esse foi o tempo que o Seco e eu levamos para percorrer os 1370 km que separam Bariloche de El Chalten através da mítica ruta 40. Depois de muita poeira, deserto, guanacos e paisagens áridas, chegamos à El Chalten no final do dia 14 de janeiro. Procuramos pelo Ricardo "Rato" Baltazar, mas o acampamento Del Lago estava deserto. Os micróbios já haviam subido, pois era o início de uma janela histórica de bom tempo. Vários dias de sol, nada de vento e calor. Nos acomodamos num camping cinco estrelas: grama, sombra na barraca até o meio dia, banho quente e vista espetacular. Acordamos no dia seguinte e aquele céu azul sem nuvens, nada de vento e um certo calor para o que eu estava esperando para o sul argentino. A primeira coisa que fizemos foi sair para ver se dava para enxergar as famosas agulhas. Não deu outra, as bichanas estavam abertinhas. Fitz, Poincenot, Saint Exupery, Inonimata, Cerro Solo, até o cume do Torre dava pra enxergar com os famosos cogumelos! Lindo demais! Era inacreditável estar ali, tão perto das montanhas que tanto ouvi falar, li aventuras épicas em livros e relatos e que foram cenário para o filme de montanha que mais me emociona até hoje: 'Scream of Stone". Não era nosso objetivo escalar nenhum agulha, mas elas ali abertas pareciam nos chamar. A vontade de subir e chegar mais perto daquelas esculturas da natureza era insuportável e, contrariando o que havíamos planejado, começamos a buscar informações sobre trilhas, agulhas, vias, aproximações, bivacs, equipamentos, mas não tinha nenhum montanhista na cidade. As poucas informações que conseguimos foram com o pessoal que trabalha nas lojas de equipamentos de montanhismo da cidade, mas eram informações vagas. Uma tarde fechamos a mochila e estávamos prontos pra subir, na cara e na coragem, para a agulha que havíamos elegido, a De la S, mas o tempo começou a fechar e abortamos a missão. Até nisso tivemos sorte. Mais tarde eu tomei consciência da burrada que íamos fazer subindo sem equipamento pra neve e sem conhecer a trilha.
Nos próximos dois dias o tempo ficou estranho, com nuvens, algumas vezes chovia e ventava bastante. Infelizmente, nesse período, uma montanhista canadense sofreu um acidente na agulha Saint Exupery e não pode ter sido resgatada. Ela acabou falecendo. Isso me fez refletir sobre o quão selvagem é esse lugar e como os montanhistas que resolvem encarar esse desafio estão à mercê da natureza, se expondo naquelas paredes lindas porém traiçoeiras.
O tempo melhorou nos próximos dias e ficou estável. Aproveitamos pra escalar por alguns dos muitos setores de escalada esportiva ao redor da cidade. Pra variar até projeto eu já tinha! Degustamos a gastronomia de Chalten e conhecemos muitas pessoas, escaladores, viajantes, fizemos amizades e colocamos em prática o "portunhol". Até aí estava tudo tranquilo. Estávamos planejando fazer uma caminhada até a base do Fitz, trilha até a Laguna de los Tres para fechar a viagem, conhecer um pouco as aproximações para, talvez, passar uma temporada em Chalten no ano que vem e tentar escalar alguma agulha. Foi então que o nosso amigo gaúcho, Alexandre Altmann, chegou. Falamos da nossa vontade em escalar a De la S e ele começou a botar a maior pilha pra gente subir. Não precisou muito para nos convencer!
O dia foi corrido: aluguel de grampões, piquetas e polainas; arrumar as mochilas novamente; consultar a previsão do tempo. O tempo passa rápido nessa correria e cansa bater perna na pequena Chalten. Ficamos de subir até o acampamento Rio Blanco na manhã seguinte, enquanto o Altmann subiria no final do dia com a família: Carine e Florinha.
A trilha até o acampamento Rio Blanco é só desfrute. Três horas de caminhada sobre terreno plano e com lindas paisagens. Ainda tivemos a feliz coincidência de encontrar os gaúchos Paulo César (PC) e Cristopher no caminho, que também estavam planejando escalar a De la S. Se tivéssemos combinado uma escalada no Rio Grande do Sul, não teria dado tão certo quanto esse encontro! Chegamos perto do meio dia ao acampamento e, como o astral desse camping é incrível e a previsão era de muito dias bons, resolvemos subir ao bivac da Laguna Sucia só no dia seguinte.
Fechamos as mochilas com o mínimo mas o essencial. Agora era caminhar até o bivac da Laguna Sucia, onde passaríamos a noite e, no próximo dia, faríamos o Altmann, o Seco e eu a tentativa de escalar a agulha De la S pela via "East Face". O PC e o Cris subiram  junto mas escalariam a via "Austian".
Nesse trecho a trilha não fica tão fácil. O início é muito parecido com uma travessia de cânion: caminhada sobre as pedras do rio Blanco. Mais a frente travessia no rio, mais um pouco de pula pula nas pedras e chegamos a Laguna Sucia, que até agora não entendo porque tem esse nome se a água é de uma cor azul turqueza, muito linda. Agora tinhamos uma visão privilegiada de todo o vale do Fitz Roy, do Glaciar Rio Blanco despencando, formando cachoeiras de degelo que desaguam na laguna. A todo momento avalanches rolavam do glaciar em direção a laguna fazendo um barulho assustador de trovão. Lindo de se ver...de longe.
Só faltava contornar a laguna à esquerda, subir sua encosta, atravessar um arroio e caminhar mais um pouquinho que chegaríamos ao bivac. Falando parece fácil, mas o caminho foi tortuoso. Acarreio solto em terreno íngrime como eu nunca tinha visto. A cada dois passos um ia pra trás. Marcha lenta e contínua. Não é fácil chegar perto das famosas agulhas de Chalten!
O bivac é um boulder com o chão retinho onde cabem cinco pessoas deitadas, bem protegidas dos intempéries. Agora o negócio era se aquecer, engolir alguma coisa e dormir porque a peleia ia começar cedo no dia seguinte. Combinamos colocar o despertador às 3h da manhã (nunca tinha acordado tão cedo pra escalar!). Eu estava alimentada, aquecida e cansada, combinação perfeita para uma pessoa apagar no sono. Mas quem disse que eu consegui dormir um minuto sequer? A euforia de estar em um lugar mágico e a ansiedade por uma escalada que seria a mais complexa da minha vida até o momento não deixaram minha cabeça apagar.
04h30min, escuridão total e nós já estávamos caminhando rumo ao glaciar Rio Blanco. Umas três horas de caminhada ainda nos separava da base da De la S. Estávamos no início do trecho de neve quando o sol nasceu. Lindo! Antes, porém, enquanto o Altmann me passava algumas instruções básicas de segurança em glaciar e de como usar corretamente os grampões e  a piqueta (tudo novidade pra mim) o PC sofreu uma queda na rampa de saída, onde o gelo estava bem duro. Ele rolou algumas vezes sobre si mesmo até conseguir se travar com a piqueta. Graças a sua experiência e agilidade, o PC não sofreu nada sério, só um queimão da neve no rosto. Mas eu fiquei tremendo nas bases. Fiquei pensando: se um cara experiente em gelo e neve caiu atravessando essa rampa, o que sobra pra mim que estou colocando os grampões nos pés pela primeira vez? Graças a sorte de iniciante e a proteção divina, não tive nenhuma queda durante a travessia do glaciar.
Chegamos ao topo de um morena (acúmulo de rochas transportadas pelo glaciar) e ali tive o privilégio de ver o Morón Rojo, a De la S e a Saint Exupery já bem perto com seu granito branco brilhando sob os primeiros raios de sol, o glaciar com sua neve branquinha com os cristais de gelo brilhando e todo quebrado pelas gretas de cor azul turqueza e o céu de brigadeiro, sem uma nuvem. Putz, como é linda a Patagônia! Ali esqueci todo o cansaço das caminhadas, o sono da noite sem dormir e o medo do novo. Só conseguia sorrir de felicidade em ser privilegiada de estar naquele lugar, naquele momento. Agora só conseguia pensar em escalar aquela parede, e o objetivo estava bem em frente, se mostrando maior a cada passo e nos fazendo acreditar que realmente o lugar é tão grandioso que nos faz perder a noção de tamanho e distância.
A travessia no glaciar foi tranquila porque conseguimos desviar do caminho mais fissurado. 9h da manhã estávamos na base da nossa via prontos para escalar. Aí começou o perrengue. A transição gelo-rocha não é assim tão simples. É preciso atravessar a rimaya (greta aberta entre a rocha e o gelo em consequência da fusão pelo calor acumulado pela rocha). Isso é delicado, mas o Seco conseguiu passar na boa. Eu me atrapalhei um pouco tendo que escalar no gelo de sapatilha. Tive que cavar buracos no gelo com minha piqueta para a sapatilha parar e ainda o medo de ser engolida pela rimaya. Chegar na rocha foi um alivio, que não durou muito. Tudo quebrado e sujo, tive que escalar um diedro desgraçado, cuidando para que não caisse nenhuma pedra no Altmann, com terra entrando até na boca e grudando na roupa molhada pela neve. Ainda tinha que tentar me equilibrar levando tudo nas costas (bota, grampões, piqueta, polainas, comida, água, primeiros socorros, roupa, etc). Que nojo! Pensei: isso é escalar em Chalten? Tinha esperanças de que a escalada fosse melhorar conforme fossemos subindo, doce ilusão...
A escalada foi tensa. O Seco guiou com maestria umas 9 enfiadas consecutivas de rocha podre e com poucas opções de proteção. Tecnicamente a escalada não tem nada de difícil. 4º grau, mas a tensão de ficar nas paradas escutando o zunido das pedras voando e escalar com todo o cuidado para não machucar quem está em baixo é muito punk. Sem contar que o calor estava atrapalhando, ou melhor, torrando os miolos. Nunca imaginei passar tanto calor na Patagônia!
Nessa altura já havíamos estouramos há muito o limite de estarmos às 14h no cume. Como era impossível rapelar por onde subimos, o negócio foi tocar pra cima. Finalmente chegamos no acarreio que vizualizamos de baixo. Ali sabiamos que era só atravessá-lo que faltaria apenas umas duas enfiadas para o cume. Nesse momento terror e pânico. Atravessar o acarreio era pior que qualquer tortura medieval. Blocos soltos, terra solta, tudo isso numa rampa inclinada para 400 metros de vaziu e morte certa. Chorei, esperniei, prometi nunca mais voltar a aquele lugar, mas tinha que enfrentar. Passo por passo e segurando a mão do Seco pra dar aquele apoio moral essencial, consegui atravessar o maldito acarreio. Certo que chegando no final tive que engolir meio Dorflex pra relaxar os músculos.
Agora sim, duas enfiadas lindas guiadas pelo Altmann e cume!!! Mas a De la S não se entrega assim tão fácil. O último lance antes do cume tinha que vencer um trecho de 6a+. Não que seja uma graduação de dificuldade, mas tenta escalar cansado, com sede e levando a casa nas costas. Não pensei duas vezes antes de dar uma puxada no cabo de um nut entalado. Afinal, não é só o cume que interessa?
Fotos, comemorações, sorrisos, vista privilegiada do Torre e de suas montanhas companheiras, mas a festa não poderia durar muito porque a parte mais perigosa vinha a seguir: os temidos rapéis patagônicos! Descemos até o col que dava para o vale do Torre e entramos para rapelar na via "Austrian". O que eu posso falar dos rapéis é que tudo o que aprendi sobre segurança, paradas equalizadas e pontos de ancoragem confiáveis foi por água a baixo. Pitons antigos, blocos duvidosos e montes de cordas, fitas e cordeletes velhos eram o que nos protegiam de despencar no vaziu e ser enterrados nas gretas do glaciar Rio Blanco. É obvio que anoiteceu e ainda estávamos descendo as intermináveis paredes de granito. Agora dava pra ter noção do tamanho da agulha e olha que é uma das menores da região!
Claro que não faltou perrengue para contar história. Estávamos no escuro, tinha acabado a água, a comida e o sono começou a pegar absurdamente. O Altmann e eu dormimos pendurados numa parada enquanto o Seco procurava a linha de rapel. Depois dessa, como o tempo parecia firme e estávamos bem aquecidos, resolvemos procurar um platô "mais confortável" e esperar o sol nascer, o que não ia demorar muito. Dormimos os três, "seguros" pelo mesmo bloco de pedra. Como o cansaço faz a gente realizar coisas até então impossíveis. Nunca imaginei que eu conseguisse dormir numa posição tão ruim, num lugar tão exposto. E dormi de sonhar, só não lembro o que sonhei.
Amanheceu e continuamos a descida. Chegamos na base da agulha por volta das 10 horas da manhã. Entre aquele tempo de colocar os grampões e arrumar as mochilas vimos despencar muito próximo de nós um bloco gigante de serac. Com o coração na boca, aceleramos o processo e no momento que começamos a travessia do glaciar mais um bloco de serac caiu. Com o coração na mão, começamos a andar na neve que, pelo avançado da manhã, estava muito mais fofa do que na ida, portanto muito mais perigosa. Na volta tivemos que pegar um caminho com muito mais gretas do que na ida. Todo caminho andávamos perto de buracos azuis cabulosos e atravessamos muitas pontes de neve (neve endurecida que tapam as gretas). Num momento o caminho ficou tão fissurado que entramos num labirinto e a única solução para sairmos dali era pular uma das tão temidas fissuras. Outro momento de terror, mas já que tava na merda mesmo, então o  negócio era se lambuzar. Felizmente, apesar de todos os perigos, nós três chegamos sãos e salvos ao bivac da Laguna Sucia, onde o PC e o Cris já se preparavam para subir para ver o que tinha acontecido conosco.
Agora eu só precisava de três coisas básicas: comer, beber e dormir. Estávamos sem nada de comida mas quem tem amigos tem tudo! O PC preparou um cup noodles incrementado com proteína de soja que salvou a vida. E eu que sempre falei mal de miojo e há tempo não como churrasco, comi um cup noodles sabor costela assada lambendo os beiços, hehe! Depois de cinco horinhas de cochilo no bivac, encaramos a caminhada de volta até o acampamento Rio Blanco. Comi mais um pouco e fui dormir logo depois de anoitecer, umas 22h. Só acordei por volta das 14h do dia seguinte.
Mais de 1h45min de descida a ritmo acelerado, nem pensava nos meus joelhos ruins, só pensava na milanesa e na cerveja que me aguardavam em Chalten. Chegamos ao pueblo e agora sim poderíamos comemorar nossa escalada, o cume e a sorte de estarmos inteiros. Nessa hora lembrei da frase que meu amigo José Brambila (in memoriam) sempre repetia: "Como é bom estar vivo"!


As montanhas de Chalten e todo o ecossitema que as rodeia é incrivelmente lindo, tudo aquilo que as pessoas que já passaram por lá falam. Porém, escalar aquelas montanhas é realmente uma escolha arriscada. Apesar de todos os riscos, a cidade é invadida por montanhistas de todo o mundo, que aguardam por até 40 dias de tempo ruim uma janela de bom tempo pra escalar. Muitas pessoas mesmo, muitos brasileiros, não dá pra negar que as montanhas de Chalten estão "na moda". Encontramos muitas pessoas próximas por lá, por momentos parecia que estávamos em Porto Alegre. Além do "crowd", as montanhas são frequentemente bombardeadas por overdose de estrelismo e egocentrismo, o Cerro Torre que o diga...Eu ainda prefiro os lugares mais selvagens e ainda protegidos da fauna antropocêntrica.
Voltar e encarar mais uma escalada em Chalten? Sim, e por que não? Mas acho que preciso aprender muito, principalmente sobre as técnicas de neve e gelo e não levar em conta as condições climáticas atípicas de minha passagem por Chalten. Sei que o clima poderia ter sido bem mais agressivo e que cometemos alguns erros que teriam tido consequências bem mais desagradáveis se o clima não estivesse tão bom.
Aí vão algumas fotos:
Ventana!

Felizes por estar juntos em mais uma trip alucinante!

Não cansa olhar.

Linda via em móvel na cidade de Chalten: Gran Diedro (5+).

Foto clássica. Foi difícil pegar um momento que não tivesse ninguém tirando foto nessa placa.

Início da caminhada a agulha De la S.

Escolhe!

Paisagens de tirar o fôlego até o acampamento Rio Blanco.

Paisagens de tirar o fôlego 2.

Seco, Altmann, Carine e Flora em frente a cabana do "Rouba-Dedos".

Acampamento Rio Blanco. Me senti grandona agora, hehe!

Trilha por dentro do Rio Blanco.

Laguna Sucia e o Glaciar Rio Blanco.

Acarreio final antes do bivac.

Nosso buraco.

PC segundos antes de tomar uma vaca fenomenal.

Primeiros raios de sol.

Transbordando de felicidade!

Gretas sinistras atrás.

Sequinho tocando pra cima na De la S.

Mortos de calor.

Foto de revista do Altmann.

O Cerro Torre e suas irmãs.

La cumbre!

Rindo a toa.

Los temidos rapeles patagonicos.

"O feitiço alpino ainda nos atrai,
A subir, a subir; e cresce a lista
Dos que morreram sem deixar a pista."
FRANCES RIDLEY HAVERGAL, 1884


A quem deseja se aventurar pelas montanhas de Chalten, muito cuidado, comprometimento, prudência e, principalmente, SUERTE!